Na
aldeia que eles vão construir, formada por cinco ocas – uma delas será
uma oca eletrônica hight tech – mais de 400 índios que vivem no Brasil,
discutirão com índios dos Estados Unidos, Bolívia, Peru, Canadá,
Nicarágua e representantes de outros países temas como código florestal,
demarcação de terras, reservas minerais, crédito de carbono, clima,
usinas hidrelétricas, saberes tradicionais, direitos culturais e
linguísticos. No final, produzirão um documento que será entregue à ONU
no dia 17 de junho.
Embora a notícia contenha informações jornalísticas, O Globo
insiste em folclorizar a figura do índio. Em pleno século XXI, o jornal
estranha que índios usem iPhone, como se isso fosse algo inusitado.
Desta forma, congela as culturas indígenas e reforça o preconceito que
enfiaram na cabeça da maioria dos brasileiros de que essas culturas não
podem mudar e se mudam deixam de ser "autênticas".
A
imagem do índio "autêntico", reforçada pela escola e pela mídia, é a do
índio nu ou de tanga, no meio da floresta, de arco e flecha, tal como
foi visto por Pedro Alvares Cabral e descrito por Pero Vaz de Caminha,
em 1.500. Essa imagem ficou congelada por mais de cinco séculos.
Qualquer mudança nela provoca estranhamento.
Quando
o índio não se enquadra nesta representação que dele se faz, surge logo
reação como a esboçada pela pecuarista Katia Abreu, senadora pelo
Tocantins (PSD, ex-DEM): "Não são mais índios". Ela, que batizou seus
três filhos com os nomes de Irajá, Iratã e Iana, acha que o "índio de
verdade" é o "índio de papel", da carta do Caminha, que viveu no
passado, e não o "índio de carne e osso" que convive conosco, que está
hoje no meio de nós.
Na
realidade, trata-se de uma manobra interesseira. Destitui-se o índio de
sua identidade com o objetivo de liberar as terras indígenas para o
agronegócio. Já que a Constituição de 1988 garante aos índios o usufruto
de suas terras – que são consideradas juridicamente propriedades da
União – a forma de se apoderar delas é justamente negando-se a
identidade indígena aos que hoje as ocupam. Se são ex-índios, então não
têm direito à terra.
Criou-se,
através dessa manobra, uma nova categoria até então desconhecida pela
etnologia: a dos "ex-índios". Uma categoria tão absurda como se os
índios tivessem congelado a imagem do português do século XVI, e
considerassem o escritor José Saramago ou o jogador Cristiano Ronaldo
como "ex-portugueses", porque eles não se vestem da mesma forma que
Cabral, não falam e nem escrevem como Caminha.
O
cotidiano de qualquer cidadão no planeta está marcado por elementos
tecnológicos emprestados de outras culturas. A calça jeans ou o paletó e
gravata que vestimos não foram inventados por brasileiro. A mesa e a
cadeira na qual sentamos são móveis projetados na Mesopotâmia, no século
VII a. C., daí passaram pelo Mediterrâneo onde sofreram modificações
antes de chegarem a Portugal, que os trouxe para o Brasil.
A
máquina fotográfica, a impressora, o computador, o telefone, a
televisão, a energia elétrica, a água encanada, a construção de prédios
com cimento e tijolo, toda a parafernália que faz parte do cotidiano de
um jornal brasileiro como O Globo -
nada disso tem suas raízes em solo brasileiro. No entanto, a identidade
brasileira não é negada por causa disso. Assim, não se concede às
culturas indígenas aquilo que se reivindica para si próprio: o direito
de transitar por outras culturas e trocar com elas.
Foi
o escritor mexicano Octávio Paz que escreveu com muita propriedade que
"as civilizações não são fortalezas, mas encruzilhadas". Ninguém vive
isolado, fechado entre muros. Historicamente, os povos em contato se
influenciam mutuamente no campo da arte, da técnica, da ciência, da
língua. Tudo aquilo que alguém produz de belo e de inteligente em uma
cultura merece ser usufruído em qualquer parte do planeta.
Setores da mídia ainda acham que "índio quer apito". Daí o assombro do Globo,
com o uso do iPhone pelos Kamayurá, equivalente ao dos americanos e
japoneses se anunciassem como algo inusitado o uso que fazemos do
computador ou da televisão: "Brasileiro quer tecnologia".
O
jornal carioca, de circulação nacional, perdeu uma oportunidade
singular de entrevistar integrantes do grupo do Alto Xingu, como Araku
Aweti, 52 anos, ou Paulo Alrria Kamayurá, 42 anos, sobre as técnicas de
construção das ocas. Eles são verdadeiros arquitetos e poderiam
demonstrar que "índio tem tecnologia".
O
antropólogo Darell Posey, que trabalhou com os Kayapó, escreveu: “Se o
conhecimento do índio for levado a sério pela ciência moderna e
incorporado aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão
valorizados pelo que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos,
que sobreviveram com sucesso por milhares de anos na Amazônia. Essa
posição cria uma “ponte ideológica” entre culturas, que poderia permitir
a participação dos povos indígenas, com o respeito e a estima que
merecem, na construção de um Brasil moderno”.
Esses são os índios do século XXI. A mídia olha para eles, mas parece que não os vê.
José
Ribamar Bessa Freire e professor, coordena o Programa de Estudos dos
Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em
Memória Social (UNIRIO).
e
Erinaldo Alves- http://ensinandoartesvisuais.blogspot.com.br/2012/05/midia-olha-os-indios-do-seculo-xxi-mas.html